Eu hoje resolvi me esvaziar de seus restos. Respirei fundo algumas vezes até me convencer dessa necessidade absurda. Não foi uma nem duas vezes, foram várias inspirações e expirações. Para esvaziar-se é preciso antes se encher. Caminhei até mim mesma, dei várias voltas em meus silêncios e constatei. Seu tempo em mim acabou. Achei estranho não ter lágrimas a oferecer-lhe, nem poemas melancólicos como de costume. Não é de meu feitio sair assim, como quem nunca entrou. No entanto quando senti todas minhas vestes ultrapassadas, toda a maquiagem ridícula, veio-me uma vontade tão grande de gargalhar que preferi me calar. Se eu pudesse prever como seria uma despedida, se eu conseguisse decifrar seus sinais, talvez tivesse palavras exatas e contundentes para lhe deixar como recordação. Mas elas teriam que ser palavras novas, talvez inventadas. Palavras que mexessem com sua porção mais íntima do cérebro a fim de conferir-lhes algum sentido. Mas não encontrei nenhuma que fosse síntese desses anos, por isso repousei o fone no gancho antes que a ligação se concluísse. Saio como quem nunca entrou, de fato, acreditando ser esse o segredo de algum amor próprio, de uma faísca de dignidade a alguém que se retira silenciosamente antes de ser percebido. Os seus rastros na casa, seu cheiro insistente nos meus cabelos, e até sua risada enigmática, precisei atirar tudo ao fogo. Desinfetar-me parece um processo doloroso e talvez me custe algum tempo. Mas hoje decidi que sua voz já não tem efeito sobre mim e que seu silêncio é só silêncio. E na verdade, olhando-o assim de fora, com olhar de quem já recupera algum sentido, você me parece uma figura indefinida de um volume de enciclopédia e eu procuro qualquer legenda que me ajude a compreendê-lo como de fato jamais compreendi. Desprendi-me da urgência de escrevê-lo e nem busco mais suas referências bibliográficas gastas e forjadas. E, agora, no fim desse meu ressurgimento nem posso mais denominar com certeza sua imagem. Assusto-me. Saio pé ante pé da área minúscula do seu domínio, que me parece tão estranha que chega a me sufocar, fecho a porta silenciosamente e ganho uma outra dimensão. O ar que faltava nos pulmões há muito tempo arde em meu interior. Respirar é uma antiga novidade que agora apreendo. Expiro tudo o que pode ainda ser de você e num sorriso largo decreto-lhe, enfim, um ponto final. De volta ao meu próprio tempo, recomeço por outra trilha. Até as nuvens carregadas com seus trovões soam mais suaves quando não se tem mais medo de chuva.
Message in the bottle.
Há 6 anos
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